"Ê ê ê ê Favela / Teu nome na vida do samba não pode morrer / Ê ê ê ê Favela / A infância tão bela que tive não posso esquecer"
Esses versos encheram meu coração de poesia. Era bem menino quando Clara Nunes irrompia pela casa seu canto emocionado para essa canção do mestre Candeia em parceria com Jaime. Os poetas se referiam à favela como um nome imorredouro no samba. Aprendi e apreendi essa afirmação como essência: samba é favela, e favela é samba. Os grandes poetas descerram do morro, os grandes sambas nasceram do morro. O samba é, por excelência, "a voz do morro". Doía-me o coração essa nova safra de compositores e intelectuais posudos tentando rebatizar a favela de "comunidade". A sociologia asséptica que só pensa em "limpar" termos, em "lavar" vocábulos com a intenção de "purificar" o estado natural das coisas. No caso do samba, o termo "comunidade" ficou tã genérico, tão lugar comum, tão destituído do único orgulho possível dessa gente marginalizada e oprimida - a sua vertente cultural. Eu sempre preferi obedecer a voz de Candeia: pra mim, samba é favela e favela é samba. Lembro ainda a bela voz de Jacyr da Portela, meu grande e saudoso amigo, com seu gogó privilegiado, cantando "Favela, favela / Tão bela, tão bela".
E aí nos vêm essa linda sinopse da São Clemente, que parece retomar sua linha histórica e conceitual, propondo um desfile que privilegia o lugar da favela no coração do samba. Vejam vocês, que primor: um enredo inteiro sobre esse tema! Que coragem, que audácia...que grandeza da São Clemente! Numa época em que favelas são chamadas de "comunidades", que enredos buscam engrossar o caldo de gente sem pertinência com o samba, de tanta necessidade de fazer média com temas que agradem os burgos políticos, a São Clemente vem com força nesse enredo de cunho popular.
E é um fato curioso, até. Porque a primeira escola de samba da zona sul (área mais nobre da cidade) é, ao mesmo tempo, uma escola de raízes encravadas no chão de morro, no chão de favela. Ali na favela Santa Marta, reduto e referência da escola. E esse enredo trará uma notável peculiaridade: estarão estreando como carnavalescos na avenida dois grandes artistas do teatro brasileiro - a encenadora Bia Lessa e o cenógrafo Gringo Cardia. Pressupõe-se um feliz casamento entre essas mentes inventivas dos palcos e a mais irreverente das escolas de samba. A direção da esxcola está de parabéns pela ousadia e pela inovação. Acho ue muito contribuirá para o engrandecimento do espetáculo. O processo criativo de Bia Lessa sempre privilegiou a interatividade e um conceito de instalação artística, razão pela qual tornou-se renomada expositora em bienais e museus com trabalhos muito intertessantes. Pode vir daí, em parceria com um dos melhores cenógrafos do país, a vocação para carnavalizar um tema.
É importante que a São Clemente se reencontre (e o enredo propõe isso) com sua alma original. A exemplo do que propõe outra escola, a União da Ilha (com seu enredo sobre brinquedos), a escola amarela e preta da Zona Sul parece ter despertado para sua própria essência, numa sinopse que relembra seu espírito crítico, de profunda contestação social, consolidado na série antológica de enredos dos anos 80/90 criados por Carlinhos D'Andrade e Roberto Costa. Naqueles anos, a escola construiu uma reputação e firmou seu DNA em temáticas onde discutia problemas muito próximos da realidade do povo, como acidentes de trânsito ("Não corra, não mate, não morra - O diabo está solto no asfalto", 1984), dificuldade de moradia ("Quem casa quer casa", 1985), os males da saúde ("Muita saúva, pouca saúde, os males do Brasil são", 1986), o menor abandonado ("Capitães do Alfalto", 1987, com o belo e mais triste samba enredo da história dos desfiles) e a violência ("Quem Avisa amigo é", 1988), para citar alguns exemplos.
Espera-se que a São Clemente consiga fugir do estigma que hoje se impõe sobre quase todas as escolas, que escondem seus enredos sob o manto do "politicamente correto". Nessa linha, esperamos do debute clementiano desses criativos artistas na avenida que eles não se curvem aos apelos das politiquices nem façam propaganda das ações de pacificação e assistencialismo arranca-votos que andam sambando por aí. Que seja (e eu acredito que será) a São Clemente do "se essa onda pega, vá pegar noutro lugar"(1988), não a que leva novelas de uma só emissora para seu desfile na avenida.
Resgatar a poesia, a dignidade e a nobreza da palavra "favela" é um primor de escolha que a São Clemente nos deu, como alento, para esse 2014 que já se aproxima.
Com licença da nossa querida leitora Duquesa Dholores... vem aí a São Clemente..."a nobreza da favela em pessoa"!!!
Com licença da nossa querida leitora Duquesa Dholores... vem aí a São Clemente..."a nobreza da favela em pessoa"!!!
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