A presença do elemento artístico nesse contexto festivo trouxe uma das características mais intrínsecas à alma do artista: a inovação. Desde sua origem até os dias atuais, a escola de samba se modificou, passou por incríveis metamorfoses, sempre incomodada com a estagnação e com a mesmice que a poderiam isolar de sua relação com o público.
Sempre houve inovação. E, se não houvesse, a escola de samba não teria se perpetuado, nem adquirido seu status de importância dentro de nosso atual cenário cultural. E a escola de samba, não obstante as criticas que sempre lhe são desferidas por isso, ainda consegue conciliar até onde pode as premissas de sua tradição original e os ímpetos de inovação que, afinal de contas, a alma do artista não pode conter.
Para não se viajar muito além nesta "máquina do tempo", podemos citar aqui alguns exemplos de inovação artística além daqueles históricos que foram as introduções de novos instrumentos nas baterias, sempre citadas e vindas "lá de trás". A ênfase artística veio com a introdução da Escola de Belas Artes no Salgueiro, nos idos de 60. Com Fernando Pamplona, Arlindo Rodrigues e Joãozinho Trinta (ainda com Z), o Salgueiro trouxe o requinte, o rigor plástico e a temática negra, mas sobretudo revolucionou por dar ao carnavalesco um status maior dentro da festa. Viisonários, porque, hoje, pode-se dizer que a tradição do samba só consegue se perpetuar na grande mídia graças ao caráter espetacular (plástico) dos desfiles.
É uma questão delicada, muito questionada até, mas em um país que não tem por hábito preservar suas tradições (falta-nos aquela oralidade de sociedades como a africana, por exemplo, tão rica na transmissão da sapiência), a imagem é tudo, e o espetáculo visual do desfile acabou dando espaço para o samba passar e se perpetuar.
Como costumo dizer, o artista é, antes de tudo, um incompreendido. E o genial Joãozinho saiu do Salgueiro, praticamente construiu a imagem e a identidade de uma escola muito jovem de Nilópolis, dando porte de majestade à Beija-Flor. Foi ele, Joãosinho (nos final dos anos 80 com S), quem driblou a proibição de enredos estrangeiros com suas mesclas de histórias de fora que acabavam sempre no Brasil, foi ele quem "verticalizou" os desfiles com alegorias do porte das chamadas "Grandes Sociedades", foi ele quem fez um homem voar na avenida (no que pese a relevância disso para o samba, enfim, é espetáculo!).
Também a Beija-Flor teve, na virada dos 70 para os 80, a consagração de Pinah. Quando todas as escolas traziam normalmente destaques brancas e brancos, oriundos dos luxuosos bailes da gala do Municipal com suas fantasias vistosas, a escola de Nilópolis apresentava sua inusitada deusa de ébano careca e com enormes cílios postiços como uma rainha africana coroada na avenida, envolta nas mesmas texturas de plumas, brilhos e luxo que suas concorrentes, mas marcando a inovação. Pinah foi chamada "cinderela negra" do samba e, de fato, encantou o Príncipe Charles, que veio assistir ao carnaval do Rio e, maravilhado, desceu para sambar com a estrela.
É claro que todos os grandes personagens do carnaval sempre causaram polêmica e sempre tiveram a sua contestação. Viva Nélson Rodrigues, que nos ensinou: "Toda unanimidade é burra". As controvérsias acabam atestando a força da inovação: ela realmente incomoda. Como se vê, nos dias atuais, as atuações do sambista e coreógrafo Carlinhos do Salgueiro. Criticado por alguns por sua forma de dançar, Carlinhos ali está para fazer o que carnaval permite: se divertir. E com arte. Prova está em sua irretocável ala de passistas, das mais consagradas e solicitadas para shows do gênero.
Polêmico e consagrado no carnaval atual, Carlinhos do Salgueiro transcendeu a ginga do malandro e transformou-se em um artista versátil, capaz de representar diversos personagens com vigorosa dramaticidade e grande eloquência teatral. Ele interpreta o malandro milongueiro, o Madame Satã inzoneiro e é capaz de viajar do masculino ao feminino com a mesma raridade de um cantor que alterna graves e agudos. Não é nada fácil fazer nem entender o que ele faz! Ele näo samba como homem nem como mulher: ele samba como CARLINHOS! Isso nada interfere nas coreografias que cria ou nos passistas que dirige, todos preservando suas características originais. É bom lembrar que o mesmo Madame Satã que "virava patrulhinhas", brigava na mão e vestia terno banco também se vestia de mulher quando lhe convinha. A Lapa sabe que isso não é novidade.
Enfim, o carnaval das escolas de samba tem se perpetuado e se caracterizado como o "carnaval do incomum". Volta e meia alguém se cansa do igual e cria, recria e reinventa a festa. Nem que para isso tenha que trazer um carro alegórico de cabeça pra baixo, do lado do avesso, como fez Paulo Barros na Viradouro em 2007. Quando também trouxe, pela primeira vez em um desfile, a bateria sobre um carro alegórico.
Mas aí já começamos a contar outra história incomum, dentre tantas do samba...
Nenhum comentário:
Postar um comentário