Em
homenagem aos 109 anos do saudoso poeta mineiro, transcrevo aqui as
impressões de Drummond, publicadas originalmente em sua coluna no Jornal
do Brasil, sobre os sambas das Escolas para o Carnaval de 1981:
“O SAMBA-ENREDO ESTE ANO”
Quais
são, mesmo, as sete maravilhas do Mundo Antigo? Pergunta que, de longe
em longe, se faz numa roda, e ninguém acerta na mosca. Lembrar quatro ou
cinco maravilhas, ainda vai; seis é proeza. Um gaiato dirá que a sétima
é a própria mulher-maravilha, mas em se tratando de erudição não é
recomendável consultar os gaiatos. A Escola de Samba Beija-Flor resolveu
o problema: lançou um samba-enredo em que elas são enumeradas, até com
esclarecimentos. Os Jardins Suspensos da Babilônia, por exemplo, um rei
os construiu com amor e, orgulhoso, à rainha os ofertou. A muralha da
China, que de longe fascina, adverte que quem tem olho grande não entra
naquele país. E o Farol de Alexandria iluminava até o infinito. Decorem a
letra de Dicró, Picolé e Neguinho da Beija-Flor, e jamais se esquecerão
desses dados históricos.
A
União da Ilha do Governador é nostálgica e nos transporta ao Rio do
começo do século, num bonde de ceroulas, para ouvir a Aída no Municipal.
Penetramos no Palácio do Catete e participamos de um sarau em que a
primeira dama do país, D. Nair de Teffé, executa ao piano nada menos que
o Corta-Jaca de Chiquinha Gonzaga, para grande escândalo do Senador Rui
Barbosa, que da tribuna ruibarboseava (o termo é dos sambistas) contra a
música popular brasileira, enquanto o pessoal corta-jacava bem gostoso
num roçado. A União lembra ainda as cocotes, umas francesas espevitadas,
que chamavam os cariocas de chéri e mon petit. Para maior compreensão
do vulgo, traduziu-as para cocotas. Os autores são Barbicha, Franco,
Dazinho e Jangada.
Triunfalista
de verdade é a Unidos de Vila Isabel, em que Jonas, Lino Roberto e Tião
Grande anunciam a volta do homem ao Paraíso perdido, com a chama do
progresso brilhando, e desvendados todos os segredos do universo.
Irromperá um vendaval de alegria e a Vila Isabel, claro, estará
presente.
Mitavaí
é o herói brasileiro exaltado no samba-enredo da Unidos da Tijuca.
Basta dizer que ele é lavrador e vaqueiro, e está evidenciado o
heroísmo, em confronto com a seca, as enchentes, o financiamento
hipotético e o difícil transporte. Mitavaí, porém, não se satisfaz com a
façanha contínua, e sai por aí a combater o monstro estrangeiro que com
todo seu dinheiro quer calar a nossa voz. Com certeiro bote fere o
monstro no cangote, mas quem disse que conseguiu matar o bicho ruim?
Mitavaí, triste mas inconformado, jura que um dia voltará, e o samba
conclui filosoficamente: o que hoje dá pra rir, amanhã dá pra chorar. A
composição é de tanta sustância que para fazê-la se juntaram Azeitona,
Celso Trindade, Nega, Ronaldo, Ivar, Buquinha e Edmundo Araújo Santos.
Se não estourar é porque o monstro não deixa.
Império
Serrano rende homenagem a Pero Vaz de Caminha, o célebre eminente
precursor dos nossos cronistas, mas Jorge Lucas e Edson Paiva fazem-lhe
uma restrição: ele não viu o ouro e as pedras preciosas, riquezas do
solo deste Brasil. Mas essas coisas acabaram sendo vistas, e até que
Portugal tirou bom partido delas, quando Mitavaí ainda não iniciara sua
penosa cruzada.
O
saudosismo de Ney Viana e Nezinho, na Mocidade Independente de Padre
Miguel, chega a celebrar as grandes sociedades, de que ninguém sente
falta. Acha o Zé Pereira uma beleza, a baiana que arrasta a sandália um
espetáculo, e outras antiguidades veneráveis.
Buguinho,
Henrique e Mauro Torrão, em nome de Acadêmicos do Salgueiro, abraçam o
Rio de Janeiro, desejando-lhe muitos anos de existência, o que faz supor
que o Rio uma hora vai acabar, embora não seja já, como o verso de
Casimiro de Abreu. E é uma
pena, pois mulatas, poesia e humor fazem sua vida tão arteira e
cultural. Não esquecendo que a República chegou sempre encantando o seu
porte natural.
Eu
gostaria de ouvir cantar, em 1968, o samba-enredo da Estação Primeira
de Mangueira, assinado por Jurandir, Comprido e Arroz: “Juscelino
Kubitschek de Oliveira, de uma lendária cidade mineira, o grande
Presidente popular. Surgiu Nonô em Diamantina e uma chama divina
iluminou sua formação. Subindo os degraus da glória, imortalizou-se na
História como Chefe da Nação, ô ô. Em sua marcha progressista o notável
estadista o planalto desbravou. Brasília, o sonho dourado que ele tanto
acalentou”. Naqueles tempos, ao comemorar-se o aniversário da jovem
Brasília, era proibido pronunciar o nome do seu fundador. Hoje, até
agrada ao Poder, que cultiva um remorso florido e monumental.
A
Imperatriz Leopoldinense, por seus porta-vozes Gibi, Serjão e Zé
Catimba, saúda o grande Lamartine Babo,e o samba da Portela é todo um
canto marítimo, imaginado por David Correia e Jorge Macedo. O mar rolou
na dança das ondas, no verso do cantador. O carnaval segue mar afora. A
espuma chega até a Avenida e arrasta o povo para o samba: a vida
brincando.
Aí
estão, em revista, os samba-enredos das Escolas do Grupo 1A. Minha
coluna é sem música, e as palavras perdem muito a seco. Mas que falta
estão fazendo as verdadeiras marchinhas e sambas de carnaval, aquelas
que não se fazem mais! Solução: recorrer às antigas, às clássicas,
imortais no coração e na voz do povo.
Carlos Drummond de Andrade
Jornal do Brasil, 26 de fevereiro de 1981
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