sexta-feira, 11 de novembro de 2011

O Cronista Carnavalesco Carlos Drummond de Andrade







Em homenagem aos 109 anos do saudoso poeta mineiro, transcrevo aqui as impressões de Drummond, publicadas originalmente em sua coluna no Jornal do Brasil, sobre os sambas das Escolas para o Carnaval de 1981:


 “O SAMBA-ENREDO ESTE ANO

Quais são, mesmo, as sete maravilhas do Mundo Antigo? Pergunta que, de longe em longe, se faz numa roda, e ninguém acerta na mosca. Lembrar quatro ou cinco maravilhas, ainda vai; seis é proeza. Um gaiato dirá que a sétima é a própria mulher-maravilha, mas em se tratando de erudição não é recomendável consultar os gaiatos. A Escola de Samba Beija-Flor resolveu o problema: lançou um samba-enredo em que elas são enumeradas, até com esclarecimentos. Os Jardins Suspensos da Babilônia, por exemplo, um rei os construiu com amor e, orgulhoso, à rainha os ofertou. A muralha da China, que de longe fascina, adverte que quem tem olho grande não entra naquele país. E o Farol de Alexandria iluminava até o infinito. Decorem a letra de Dicró, Picolé e Neguinho da Beija-Flor, e jamais se esquecerão desses dados históricos.


A União da Ilha do Governador é nostálgica e nos transporta ao Rio do começo do século, num bonde de ceroulas, para ouvir a Aída no Municipal. Penetramos no Palácio do Catete e participamos de um sarau em que a primeira dama do país, D. Nair de Teffé, executa ao piano nada menos que o Corta-Jaca de Chiquinha Gonzaga, para grande escândalo do Senador Rui Barbosa, que da tribuna ruibarboseava (o termo é dos sambistas) contra a música popular brasileira, enquanto o pessoal corta-jacava bem gostoso num roçado. A União lembra ainda as cocotes, umas francesas espevitadas, que chamavam os cariocas de chéri e mon petit. Para maior compreensão do vulgo, traduziu-as para cocotas. Os autores são Barbicha, Franco, Dazinho e Jangada.


Triunfalista de verdade é a Unidos de Vila Isabel, em que Jonas, Lino Roberto e Tião Grande anunciam a volta do homem ao Paraíso perdido, com a chama do progresso brilhando, e desvendados todos os segredos do universo. Irromperá um vendaval de alegria e a Vila Isabel, claro, estará presente.


Mitavaí é o herói brasileiro exaltado no samba-enredo da Unidos da Tijuca. Basta dizer que ele é lavrador e vaqueiro, e está evidenciado o heroísmo, em confronto com a seca, as enchentes, o financiamento hipotético e o difícil transporte. Mitavaí, porém, não se satisfaz com a façanha contínua, e sai por aí a combater o monstro estrangeiro que com todo seu dinheiro quer calar a nossa voz. Com certeiro bote fere o monstro no cangote, mas quem disse que conseguiu matar o bicho ruim? Mitavaí, triste mas inconformado, jura que um dia voltará, e o samba conclui filosoficamente: o que hoje dá pra rir, amanhã dá pra chorar. A composição é de tanta sustância que para fazê-la se juntaram Azeitona, Celso Trindade, Nega, Ronaldo, Ivar, Buquinha e Edmundo Araújo Santos. Se não estourar é porque o monstro não deixa.


Império Serrano rende homenagem a Pero Vaz de Caminha, o célebre eminente precursor dos nossos cronistas, mas Jorge Lucas e Edson Paiva fazem-lhe uma restrição: ele não viu o ouro e as pedras preciosas, riquezas do solo deste Brasil. Mas essas coisas acabaram sendo vistas, e até que Portugal tirou bom partido delas, quando Mitavaí ainda não iniciara sua penosa cruzada.  


O saudosismo de Ney Viana e Nezinho, na Mocidade Independente de Padre Miguel, chega a celebrar as grandes sociedades, de que ninguém sente falta. Acha o Zé Pereira uma beleza, a baiana que arrasta a sandália um espetáculo, e outras antiguidades veneráveis.


Buguinho, Henrique e Mauro Torrão, em nome de Acadêmicos do Salgueiro, abraçam o Rio de Janeiro, desejando-lhe muitos anos de existência, o que faz supor que o Rio uma hora vai acabar, embora não seja já, como o verso de Casimiro de Abreu.  E é uma pena, pois mulatas, poesia e humor fazem sua vida tão arteira e cultural. Não esquecendo que a República chegou sempre encantando o seu porte natural.


Eu gostaria de ouvir cantar, em 1968, o samba-enredo da Estação Primeira de Mangueira, assinado por Jurandir, Comprido e Arroz: “Juscelino Kubitschek de Oliveira, de uma lendária cidade mineira, o grande Presidente popular. Surgiu Nonô em Diamantina e uma chama divina iluminou sua formação. Subindo os degraus da glória, imortalizou-se na História como Chefe da Nação, ô ô. Em sua marcha progressista o notável estadista o planalto desbravou. Brasília, o sonho dourado que ele tanto acalentou”. Naqueles tempos, ao comemorar-se o aniversário da jovem Brasília, era proibido pronunciar o nome do seu fundador. Hoje, até agrada ao Poder, que cultiva um remorso florido e monumental.


A Imperatriz Leopoldinense, por seus porta-vozes Gibi, Serjão e Zé Catimba, saúda o grande Lamartine Babo,e o samba da Portela é todo um canto marítimo, imaginado por David Correia e Jorge Macedo. O mar rolou na dança das ondas, no verso do cantador. O carnaval segue mar afora. A espuma chega até a Avenida e arrasta o povo para o samba: a vida brincando.


Aí estão, em revista, os samba-enredos das Escolas do Grupo 1A. Minha coluna é sem música, e as palavras perdem muito a seco. Mas que falta estão fazendo as verdadeiras marchinhas e sambas de carnaval, aquelas que não se fazem mais! Solução: recorrer às antigas, às clássicas, imortais no coração e na voz do povo.



Carlos Drummond de Andrade
Jornal do Brasil, 26 de fevereiro de 1981

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