Os avaliadores que formam o corpo de jurados do carnaval do Rio de Janeiro são tão conservadores quanto os membros da Academia Cinematográfica de Hollywood, na hora de escolherem os vencedores do Oscar. Não que as escolas que venceram o carnaval não o tenham conquistado por merecimento, mas entre premiar os temas clássicos ou os enredos contestadores, irreverentes e de teor social, o júri opta pela primeira. Na história recente do carnaval carioca, na chamada Era Sambódromo, as escolas campeãs sempre apresentam os temas mais bem comportados possíveis. Os enfoques novos, criativos, críticos e até revolucionários assustam e poucas vezes são reconhecidos com as primeiras colocações, às vezes até amargando o rebaixamento. A seguir, um retrato comentado dos resultados nos últimos 21 anos:
1984– Inauguração da Passarela do Samba e primeiro ano em que o desfile é dividido em dois dias, sendo uma classificação para cada dia. A Caprichosos de Pilares (3º lugar) leva à avenida um tema sobre Chico Anísio e os demais humoristas brasileiros. Com “Alô, mamãe”, a Imperatriz Leopoldinense (4º) faz uma crítica política e social do Brasil tendo como mote a eleição do cantor Agnaldo Timóteo para a Câmara dos Deputados, ocorrida um ano antes. A Mocidade (2º) mostra toda a irreverência da história do contrabando no Brasil com “Mamãe eu quero Manaus”. As campeãs foram Mangueira, com “Yes, nós temos Braguinha” (que sagrou-se supercampeã) e Portela, com “Contos de Areia”.
1985– O carnaval do saudosismo. Das 16 escolas, seis apresentaram temas nostálgicos ou prestaram homenagens a ídolos do passado. Ironicamente, a campeã – Mocidade Independente de Padre Miguel – apresentou um enredo futurista. Das escolas rebaixadas, a São Clemente (15º lugar) mostrou o problema da falta de habitação e a Em Cima da Hora (16º) desfilou com um tema sobre as dificuldades dos retirantes nordestinos na cidade grande. A Cabuçu (14º) quase caiu por apresentar a história dos povos oprimidos no Brasil. A Caprichosos fez um desfile histórico ao exaltar o saudosismo e criticar a nudez excessiva no carnaval. Mesmo sendo aclamada “campeã do povo”, a agremiação de Pilares não passou de um quinto lugar.
1986– os temas críticos e sociais ganham mais força no carnaval. Até escolas não tão adeptas do segmento, dão seus pitacos. Em “Assombrações”, a União da Ilha (6º lugar) reclamava que o leão do Imposto de Renda “só mordia o bumbum do pobre”. A tradicionalíssima Portela (4º) se queixava “com tantas taxas para pagar”. Com um samba arrebatador, a Império Serrano (3º) revelava seus desejos, com um país de futuro melhor e com uma “juventude sã e ar puro ao redor”. A Caprichosos de Pilares (9º) criticava ferozmente a influência norte-americana nos hábitos e costumes brasileiros. A Unidos da Tijuca (15º) foi rebaixada ao Grupo de Acesso, por levar à avenida, “Cama, mesa e banho de gato”, uma versão apimentada dos sete pecados capitais sob a ótica da luxúria. A campeã do carnaval foi a Mangueira, com uma merecida homenagem a Dorival Caymmi.
1987– a crítica ácida e a mordaz irreverência são cada vez mais acentuadas nos desfiles de carnaval. A São Clemente (7º lugar) discute a questão dos menores de rua; a Caprichosos de Pilares (8º) aproveita o ano eleitoral para a Assembléia Constituinte e descasca a classe política; a Mocidade (2º) mostra um desfile em que índios comandam uma metrópole independente e desenvolvida; a Império da Tijuca (15º e rebaixada) mostrou a luta do povo brasileiro contra a opressão a partir da obra literária de João Ubaldo Ribeiro. A Mangueira obtém o bicampeonato homenageando o poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade.
1988 – Mesmo não sendo uma determinação da Liesa, várias escolas de samba se propuseram a falar sobre o centenário da Abolição da Escravatura. A tradicional Mangueira (2º lugar) questionava se realmente “já raiou a liberdade ou se foi ilusão”. A Beija-Flor (3º) cantava que a liberdade já tinha raiado “mas a igualdade não”. Um pouco mais ufanista, a Tradição (8º) exaltava a miscigenação brasileira com “o melhor da raça e o melhor do carnaval”. Os temas críticos ficavam a cargo da São Clemente (10º), que bradava contra a violência; a Império Serrano (7º) apresentou um tema separatista, querendo novamente a divisão entre o Rio e o Estado da Guanabara; a Mocidade (8º) acreditava num novo país, após a constituição de 88 e a Imperatriz (14º) transformava em piada todos os escândalos políticos. A campeã foi a Vila Isabel com o desfile mágico “Kizomba, a festa da raça”.
1989– foi o ano-síntese da confirmação da posição conservadora do júri de carnaval. Os temas envolvendo crítica, política e irreverência espocavam. A Vila Isabel (4º lugar) prestava uma homenagem aos 40 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. A Ponte (15º e rebaixada) apresentou um manifesto ecológico com “Vida que te quero viva”. A São Clemente (13º) criticava a exploração das riquezas do país, desde as minerais até os craques de futebol. Tema semelhante foi apresentado pela Caprichosos (12º). O Salgueiro (5º) exaltava a consciência negra e a bravura dos heróis negros. O ponto alto do carnaval de 89 foi a revolução estética proposta por Joãosinho Trinta, então na Beija-Flor (2º), em fazer um desfile de luxo a partir do lixo, com “Ratos e urubus, larguem minha fantasia”. A campeã daquele ano foi a Imperatriz Leopoldinense, com o enredo “Liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós”, sobre o centenário da Proclamação da República. Tema mais bem comportado, impossível.
1990– os carnavalescos continuam férteis em temas críticos. Num dos melhores desfiles da década, a São Clemente (6º lugar) fez um mea-culpa em “E o samba sambou”, expôs todas as feridas do carnaval moderno e criticou a realidade vivida nas escolas de samba. A Santa Cruz (15º e rebaixada) homenageou o jornal O Pasquim, marco da resistência jornalística brasileira na época da ditadura nos anos 70. A Beija-Flor (2º) desafiou a proibição imposta pela Liesa do nudismo total nos desfiles respondendo que “todo mundo nasceu nu”. A Cabuçu (16º e rebaixada) deixou de lado as homenagens a artistas brasileiros, pôs a mão na consciência política e questionou se fez certo ao escolher Collor de Mello como presidente da República. A História tratou de responder. A pequena Lins Imperial (14º) celebrou a figura de “Madame Satã”, um negro, pobre e homossexual que marcou época na boêmia carioca. A polêmica do ano ficou a cargo do desfile da politizada Vila Isabel (12º) que teve a ousadia em debater a reforma agrária em plena Sapucaí, com o tema “Se esta terra, se esta terra fosse minha”. A campeã foi a Mocidade Independente, que contou sua própria trajetória em “Vira, virou... a Mocidade chegou”.
1991– os enredos contestadores continuavam em voga na Passarela do Samba. A Beija-Flor (3º lugar) fez uma metáfora das mazelas sociais do Brasil em “Alice no Brasil das Maravilhas”. A Lins Imperial (14º e rebaixada) contou a luta do seringueiro e defensor do meio ambiente Chico Mendes, morto por ser o “Arauto da natureza”. A Caprichosos (10º) e a Grande Rio (16º e rebaixada) trouxeram enredos apocalípticos sobre o que poderia acontecer com o futuro do universo se o ser humano não evoluísse. A irreverente São Clemente (13º e rebaixada) apresentou o criativo enredo ficcional-espacial-futurista “Já vi este filme”. A Estácio de Sá (5º) criticou a mania de grandeza da classe média mostrando que o Brasil é “kitsch e brega”. A Mocidade sagra-se bicampeã com “Chuê, chuá, as águas vão rolar”.
1992 – os carnavalescos começam a constatar que temas irreverentes e críticos servem para divertir o público e satisfazer a intelectualidade mas não ajudam a ganhar carnaval. As escolas começam a se afastar deste tipo de enredo. Das 14 agremiações, a única que ameaçou contestar alguma coisa foi a Vila Isabel (12º lugar), que resolveu debater os 500 anos do Descobrimento da América a história e provar que povos da Antigüidade já circulavam no continente. A Estácio de Sá conquistou seu único título, com “Paulicéia Desvairada”.
1993– a crítica começou a ficar ausente do carnaval. A polêmica solitária naquele ano foi protagonizada pela Caprichosos de Pilares, que retratou a população suburbana do Rio de Janeiro no enredo “Não existe pecado do lado de cá do Túnel Rebouças” (13º) e insinuou uma possível guerra entre as classes sociais. Não fosse o tapetão, a escola teria sido rebaixada. Com “Peguei um Ita no Norte”, o Salgueiro apresentou um desfile inesquecível e conquistou o título em 93.
1994– os temas de crítica social ficam cada vez mais escassos. Cansada da superexposição de pagodeiros mauricinhos e de grupelhos de samba pré-fabricados, a Portela (7º) respondeu com o enredo “Quando o samba era samba”, um tema com samba e carnaval de verdade.
1995 – Enquanto os temas irreverentes e sociais diminuíam, começou a famigerada era dos enredos que exaltam estados e municípios em troca de patrocínio. Foi assim com a Ponte (11º lugar, Paraná, este estado leva a sério o meu país), Mangueira (4º, “A Esmeralda do Atlântico”, sobre Fernando de Noronha) e até a campeã Imperatriz Leopoldinense, que tirou uma lasquinha do estado do Ceará para subsidiar o enredo “Mais vale um jegue que me carregue do que um camelo que me derrube lá no Ceará”. O momento crítico do desfile naquele ano foi a Mocidade (4º), que, ao falar na fé e nas diferentes religiões em “Padre Miguel, olhai por nós”, deu uma chapuletada nas seitas neopentecostais.
1996– Num ano em que a galinha d’angola e a sombrinha foram temas, o diferencial foi o carnaval apresentado pelo Império Serrano (6º lugar), que mostrou o trabalho solidário do sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, e a Ação da Cidadania contra a Fome. Campeã: Mocidade Independente.
1997– nenhum tema predominantemente irreverente ou contestador. Campeã: Viradouro.
1998– A emergente escola Unidos da Porto da Pedra (14º lugar) resolveu reviver temas polêmicos e apresentou “Samba no pé e mãos ao alto, isto é um assalto”. Os jurados não devem ter entendido o enredo e acharam que a escola estaria fazendo apologia ao crime. O resultado foi que a agremiação de São Gonçalo amargou o último lugar e o conseqüente rebaixamento. Uma das controvérsias foi uma alegoria em que mostrava um turista sendo assaltado por um pivete. Após quase 20 anos, o título de campeã foi dividido por duas escolas, Mangueira e Beija-Flor.
1999 – um ano em que predominou a exaltação a estados e prefeituras em busca de patrocínios. Campeã: Imperatriz Leopoldinense.
2000 – ano do carnaval temático em homenagem aos 500 anos do Descobrimento do Brasil. As escolas apresentam temas históricos. Campeã: Imperatriz Leopoldinense.
2001– um ano sem temas críticos, irreverentes nem contestadores. Predominam os temas exaltando as riquezas turísticas de cidades e estados. Campeã: Imperatriz Leopoldinense.
2002 – Os enredos exaltando paisagens paradisíacas brasileiras e empresas de aviação tomam conta do carnaval. Campeã: Mangueira.
2003– Os enredos contestadores retornam à Sapucaí agora em versão mais light. A Imperatriz Leopoldinense (4º lugar) fala sobre a historia da pirataria no país. A campeã Beija-Flor comemora a vitória de Lula para a Presidência da República falando sobre a luta dos povos contra a opressão, dando um tom épico ao tema.
2004 – A Liesa permitiu a reedição de sambas enredos antigos. Os arroubos de criatividade ficaram com a São Clemente (14º e rebaixada) e com a Grande Rio (10º) e a polêmica gerada com o enredo sobre a camisinha. Campeã: Beija-Flor.
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