quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

A saga de uma comunidade em busca da credibilidade


Rio de Janeiro, 08 de dezembro de 2011. No dia de Nossa Senhora da Conceição, padroeira da escola, a Portela realiza sua festa de protótipos.  Com a reforma de sua quadra de ensaios, a exposição das fantasias aconteceu no River, em Piedade, clube que passou a receber alguns dos mais importantes eventos da agremiação. O trânsito na cidade, mais confuso que o habitual, em virtude de vias fechadas e do dia chuvoso, dificultou a chega do público. No ginásio principal, diante de um respeitoso altar sincrético e de um telão, que exibia clipes de Clara Nunes, os presentes, especialmente os torcedores da azul-e-branco, puderam presenciar um trabalho primoroso, que mostrou como o estilo do carnavalesco Paulo Menezes encontra ressonância na alma portelense. O incontido sorriso, que insistia em brilhar no rosto de todos, dos componentes comuns aos membros da diretoria, mostrava que a escola acabara de dar mais um passo bem sucedido na preparação do carnaval.
Na verdade, o sorriso no rosto dos torcedores da Portela e os elogios aos protótipos, juntamente com outras importantes etapas já vencidas na preparação do carnaval de 2012, estão ajudando, finalmente, a dissipar as espessas nuvens cinza que pairavam sobre a escola. Nuvens cinza, é importante lembrar, formada pelos erros e equívocos dos últimos anos, mas que foram engrossadas pelos rolos negros de fumaça que saíram da cidade do samba, naquela trágica manhã de fevereiro, há mais de 10 meses. Após o carnaval de 2011, ao contrário de União da Ilha e Grande Rio, que saíram fortalecidas pela superação da tragédia, desfecho já previsto desde que as chamas destruíram seus barracões, a Portela estava mergulhada em uma crise. O fogo, além de consumir fantasias e sonhos, manifestou alguns conflitos e problemas que estavam latentes, antecipando, pelo não julgamento, uma série de discussões e polêmicas que normalmente são lembrados apenas ao final do desfile.
Não há como negar que, além de glórias e vitórias, o passado da Portela é repleto de muitos momentos de crises. Algumas deixaram cicatrizes profundas, marcas indeléveis na história da escola e na memória dos portelenses.  Só para citar um exemplo, a briga que motivou o afastamento de Paulo Benjamim de Oliveira, mesmo tendo acontecido há mais de 70 anos, ainda hoje é motivo de intensos debates entre muitos portelenses, que não desistem de encontrar uma explicação plausível para o fato. Em 2011, o fogo e o não julgamento abriram mais uma ferida, exigindo, diante do caos e da indefinição quanto ao futuro, uma postura mais atuante dos torcedores. Em outras palavras, diante da dor e da incerteza, o portelense precisou abandonar a passividade, tão comum entre os sambistas, e buscou uma solução para os problemas de sua escola, reivindicando o simples direito de ter esperança. Nas arquibancadas, na Internet, em Oswaldo Cruz ou reunidos na Av. Rio Branco, o portelense resolveu ser protagonista de sua própria história.
Parafraseando Euclides da Cunha, o portelense é antes de tudo um forte.   Além das glórias da maior vencedora do carnaval carioca, a memória coletiva da comunidade traz a luta de pessoas simples que, após chegarem a um subúrbio ainda em formação, fundaram, com a força da solidariedade e de seus laços sociais, uma das instituições culturais mais importantes do país. O portelense de hoje sabe que seus antecessores construíram, sambando, cantando ou tocando seus instrumentos de percussão, alguns dos principais fundamentos do samba, ajudando a criar parte dos estereótipos pelos quais os próprios brasileiros são reconhecidos. Como resultado do trabalho dos fundadores, surgiu a maior vencedora do carnaval carioca, uma escola de samba que reinou absoluta no carnaval carioca ao longo das décadas de 1940, 50 e 60. Tendo como referência os ensinamentos de seus mestres, como a elegância, aprendida com Paulo, ou a valentia, herdada de Natal, o portelense de hoje segue em frente de cabeça de erguida, travando suas lutas no presente.
Todavia, o orgulho do passado contrasta com a realidade das últimas décadas. Os anos sem vitória, as cisões e os conflitos internos, que quase sempre encontram alguma ferida ainda não totalmente cicatrizada, lançam os portelenses num turbilhão de dúvidas e incertezas. Foi esta nuvem de indefinição, formada pela explosiva combinação do orgulho ferido com a falta de esperança e perspectiva, que foi expelida pelo fogo naquela trágica manhã de fevereiro, juntamente com a fumaça dos materiais carnavalescos. Nos últimos 30 anos, os portelenses alternaram momentos de euforia e pessimismo diante das perspectivas de sua escola. Já sorriram com grandes desfiles, sofreram com apresentações aquém da sua capacidade, lamentaram a injustiça de alguns resultados. Enfrentaram uma ditadura, apostaram em uma nova Portela, sorriram e sofreram com a sua velha guarda, voltaram a desfilar entre as campeãs, se desiludiram e, quando os próprios sonhos pareciam despedaçados, foram para a porta da LIESA.
Na verdade, ao mesmo tempo em que torciam para que sua escola recuperasse a força e o prestígio de outrora, os portelenses, provavelmente mais do que os torcedores de quaisquer outras agremiações, se mobilizaram. No final da década de 1990, percebendo que sua escola era a única que não possuía um site na internet, meio de comunicação que começava a mostrar sua força, alguns portelenses se uniram para criar um site. Desta iniciativa surgiu o Portelaweb, que, além de divulgar a agremiação na grande rede, se consolidou como um dos principais portais de informação sobre a história da Portela. Em 2003, com a fundação da torcida Guerreiros da Águia, que inaugurou uma nova forma de externar a paixão por sua escola de samba e torcer nas arquibancadas, muitos portelenses estreitaram laços sociais e, naturalmente, passaram a viver mais intensamente os sucessos e fracassos da agremiação. O surgimento mais recente de outras torcidas, como a Portelamor e a Amigos da Águia, mostram que, no tocante à organização e mobilização, os torcedores da Portela estão na vanguarda no carnaval.
O corolário disso é que, quando os problemas latentes se manifestaram, e a crise eclodiu pós o incêndio na cidade do samba, já encontraram torcedores mobilizados e dispostos a enfrentar os problemas da agremiação. Os bons ventos que parecem soprar, pelo menos até agora, na preparação deste carnaval de 2012, tem grande participação desta mobilização da torcida. Mais do que nunca, impulsionando o voo da águia, está a paixão dos portelenses.  Um bom exemplo é o samba de 2012, fruto, é verdade, do talento dos compositores e do bom enredo desenvolvido pelo carnavalesco, mas, o que se viu ao longo da disputa, foi parte da torcida sacrificando suas vidas pessoais para que a escola tivesse um grande samba.  Assim, movidos pelo amor de torcedores abnegados, pela primeira vez depois de muitos anos, a Portela parece finalmente unida em prol de um objetivo.
Quem sabe apenas o enredo de superação da Portela, ao contrário de suas coirmãs, não seja apenas um pouco mais longo?  Certamente ele começou bem antes do incêndio, no drama da escola vitoriosa que não consegue êxito, e, como num épico carnavalesco, um dia terá fim, sendo a tragédia de 2011 apenas mais um capítulo. Para 2012, além do bom samba, muitos passos importantes já foram dados, como a manutenção dos profissionais e os já citados protótipos, que fizeram o portelense voltarem a sonhar.  Outros passos, entretanto, precisam ser dados. O caminho é longo e tortuoso, mas tudo é mais fácil quando se está, novamente, em companhia da esperança.  Este não é exatamente um texto sobre uma escola de samba. É a saga de uma comunidade em busca da credibilidade.

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