sábado, 27 de agosto de 2011

A hora e a vez dos anti-herois

 rogério sarturnino vai buscar nos desfiles do Salgueiro dos anos 60, as sementes que germinaram nos anos 80, após o hiato da ditadura militar e a abertura, com seus carnavais de temática plural, indo do onírico à crítica sócio-política mais radical: os "intelectuais" do povo, ou por que não, adotando uma nomenclatura de Gramsci, orgânica?: Pamplona, Arlindo, Joãozinho Trinta, Viriato, Luís Fernando Reis (estes últimos, acréscimos meus). Sem delongas...


"Desde a década de 1980, entretanto, é possível perceber uma mudança significativa no tratamento dispensado à concepção, representação e recepção dos enredos carnavalescos, o que implica um processo de (re)descobertas de outras fontes que ajudam a retratar o Brasil, o povo brasileiro e suas marcas identitárias por meio da escavação de textos históricos e culturais seqüestrados pela oficialidade ou recém-descobertos por estudiosos de várias áreas do saber.

Notamos a mudança do quadro de referências histórico-culturais e o declínio do 'nacionalismo militante' imposto pela ditadura Vargas que, na tentativa de transformar a festa popular numa festa cívica - pela ação do Estado -, obrigou o exercício de patriotismo que, ao passo que legitimava os desfiles como uma festa cultural tipicamente brasileira, utilizava a escola de samba como um aparato ideológico do Estado. Um dos motivos que esclarece tal mudança reside na defasagem de vultos e eventos históricos e culturais e na necessidade da renovação do quadro de referências que compõem o relicário brasileiro.



É certo que nos anos 60 houve um primeiro ensaio para a promoção da mudança quando um grupo de artistas intelectuais encabeçado por Fernando Pamplona, na época professor da escola de Belas Artes, e por Arlindo Rodrigues, cenógrafo do Teatro Municipal, propunha a louvação de novos heróis nos enredos da Acadêmicos do Salgueiro. Xica da Silva, Chico Rei, Zumbi dos Palmares e Dona Beja foram algumas dessas figuras míticas resgatadas pelo carnaval carioca. A idéia do grupo, além de promover a identificação da comunidade no morro tijucano com os heróis seqüestrados pela oficialidade, também
traz à tona expressões duplicadas de problemas, dúvidas e inquietações na medida em que tira da cena os vultos da esfera da ordem e em que dá preferência a personagens vinculados à subversão dos valores por transgredirem, de alguma forma, por suas espertezas, a ordem imposta pela História Oficial.

A tentativa foi válida, mas os resultados não foram imediatos. Não podemos esquecer que a censura da ditadura militar também atuou - assim como no teatro, no cinema, na televisão etc. - de maneira eficaz no carnaval, garantindo a permanência e estabilidade do quadro de referências oficiais cantado nos desfiles.

Quando começam os primeiros sintomas da abertura política, o movimento de busca de novos valores culturais recupera suas forças. Em 1981, o pesquisador Paulo César Cardoso criou, para a Unidos da Tijuca, escola do morro do Borel, o enredo O que dá pra rir, dá pra chorar , com base no desconhecido romance de M. Cavalcante Proença, "Manuscrito holandês - ou a peleja do caboclo Mitavaí contra o monstro Macobeba" . O enredo propunha a manutenção dos valores e riquezas culturais típicos brasileiros por meio da expulsão de matérias estrangeiras que começavam a contaminar as referências culturais do Brasil. Este talvez tenha sido o enredo que inaugura o projeto de busca de novas temáticas a serem cantadas pelas escolas de samba.


Vale ressaltar que o referido romance é praticamente desconhecido no meio acadêmico das letras. São poucos, aliás raros, os alunos e os professores que leram ou ouviram falar desta obra do autor do Roteiro de Macunaíma , apesar de ele figurar na lista dos cem melhores romances brasileiros produzidos no século XX, indicados pela Academia Brasileira de Letras. Por um lado, os enredos contados nos desfiles das escolas de samba concebem e representam a nação brasileira por meio de 'semióforos' que, segundo Marilena Chauí (2000), são acontecimentos (eventos históricos), pessoas (filhos ilustres),
documentos (fontes historiográficas) e instituições considerados relíquias e cujo valor não é medido pela materialidade, mas pela força simbólica carregada de sentidos e significações passadas, presentes e futuras. Um semióforo é fecundo porque dele não cessam de brotar efeitos de significação, é um objeto de celebração por meio de representações de feitos heróicos em locais públicos e datas festivas, para assegurar o sentimento de comunhão e de unidade. Por outro lado, ainda que a matriz permaneça sendo a nação, esses 'semióforos', já carregados de sentidos, têm sido ressemantizados e (re)criados pelo carnaval em busca de novos efeitos de significação e de outras riquezas a serem comungadas como patri-mônio do povo brasileiro.

Esses semióforos indicam o caminho e a função de sua existência, quando concebidos como estandartes carregados pelos desfilantes por meio de suas indumentárias, do canto, da dança. É no momento do desfile que esses signos de poder e de prestígio são compartilhados na crença de um passado comum que os identificam como brasileiros.



No período carnavalesco, a conservação/manutenção desses sistemas de crenças sai das mãos de seus detentores iniciais (instituições oficiais como escolas, museus, bibliotecas) e fica, ainda que 'efemera-mente', sob o poder e a guarda dos sambistas. É deles também a responsabilidade de fazer crescer a quantidade de conhecedores desses objetos especiais que potencializam o orgulho da brasilidade.

Não podemos esquecer que o produtor do discurso que concebe e representa a força desses semióforos é o carnavalesco, tomando para si a função de 'mediador cultural'. Para empregar a definição de Michel Vouvelle (1987), ele é "correia de transmissão de uma cultura ou de um saber" e, ao mesmo tempo, "porta-voz popular". A ele compete a tarefa de (re)produzir o que deverá ser dito sobre este ou aquele patrimônio (artístico, cultural, histórico, geográfico, popular). Sua primeira tarefa é
a de escavar, como um arqueólogo, escombros desprezados em momentos de construção do edifício nacional, ou mesmo desconstruir esse edifício e reconstruí-lo com novos alicerces.

Cabe averiguar que outros motivos, além dos apontados, promoveram a mudança dos desfiles no que concerne aos enredos a partir da década de 1980 quando o desfile se configura como um evento popular de apelo midiático, motivo dilatador do pólo receptor (leia-se espectadores e jurados dos desfile), e verificar que vínculos tem essa nova temática cantada pelas escolas de samba com a fomentação dos estudos culturais nos meios acadêmicos, naquela mesma época, sabendo que a grande maioria
dos carnavalescos que atuam no carnaval carioca tem formação universitária na área das ciências sociais e humanas - são professores, historiadores, artistas plásticos, endossando a máxima "Quem gosta de pobreza é intelectual. Pobre gosta é de luxo!".


Esta frase proferida por João Clemente Jorge Trinta ajudou a imortalizá-lo como uma das figuras mais importantes na história do carnaval e do samba no Rio de Janeiro. Polêmico e estrategista, o carnavalesco Joãosinho Trinta ressemantizou a linguagem plástica dos desfiles de escola de samba, na década de 1970, quando na Beija-Flor de Nilópolis elaborou desfiles que quebraram com a estética vigente até então. Adorador das alturas e do exagero, fez carnavais faraônicos e foi acusado de
ser um dos principais mentores do carnaval espetáculo que temos hoje.

A verdade é que a partir de João o carnaval não seria mais o mesmo, nem nas questões plásticas e nem no que concerne às temáticas. Oriundo do grupo do Salgueiro, formado ainda nos anos 60, o carnavalesco maranhense trouxe ao carnaval temas antes desprezados pela falta de vínculo com a oficialidade histórica, recorrente desde os primeiros desfiles nos anos 30. A fórmula foi seguida e as outras escolas também se 'beijaflorizaram' e outros artistas do carnaval se revelaram pensando o Brasil sob seus delírios carnavalescos."

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