BATUQUE É UM PRIVILÉGIO. SAMBA NÃO SE APRENDE NO COLÉGIO.
Há algumas semanas atrás, em entrevista ao jornal Extra, do Rio de Janeiro, o compositor David Corrêa (o maior vencedor de sambas-enredo da Portela, com sete hinos levados para a avenida) chutou o balde ao denunciar a existência de supostos escritórios ou firmas, que seriam grupos de compositores que disputam sambas em várias escolas sem assinar a parceria e que contratam sambistas da comunidade como “laranjas”, para terem o certificado de autenticidade.
Não vou falar sobre as firmas nem os escritórios, mas quero me deter na excessiva especialização de novos compositores. A grande maioria desses autores da novíssima geração – sambistas ou não – não fazem outra coisa a não ser compor samba enredo. Quando muito, participam também de concursos de samba de quadra. Eu digo “quando muito” porque o samba de quadra é um gênero que não ganha a mesma divulgação de um samba enredo, por exemplo.
Os compositores da “nova guarda do samba” afirmam que procuram uma nova concepção de fazer samba enredo, com melodias complexas, tonalidades harmônicas inusitadas, boas sacadas na letra e procuram fugir dos clichês datados e que são exaustivamente repetidos. Aplausos para eles, mas pelo que vi, nenhum, mas NENHUM MESMO – pelo que eu saiba – tem vida fora do carnaval. E olha que tem muita gente boa e premiada nessa jogada, como Aloisio Villar (Boi da Ilha), André Diniz (Vila Isabel), Clóvis Pê (Mangueira), a dupla Erick & Zezé (Paraíso do Tuiuti e Império Serrano), Eugênio Leal (São Clemente), Gugu das Candongas (União da Ilha), Fernando de Lima (Santa Cruz), Gusttavo (Viradouro) e João Estevam (Imperatriz Leopoldinense). Por que eles não poderiam fazer sucesso com canções de meio de ano ou abastecendo artistas do samba?
Antigamente, samba enredo era apenas uma ramificação dessa incontável matriz que é o gênero samba. Em 1983, o carnavalesco Arlindo Rodrigues, em “Skindô, skindô”, expôs na sinopse do tema que foi levado à Sapucaí na Acadêmicos do Salgueiro no ano seguinte que o samba possui pelo menos uma dezena de sub-gêneros: partido alto, samba de breque, samba-exaltação, samba de terreiro, samba-canção, samba-maxixe, choro, samba de roda, bossa nova, além do samba enredo. Isso que Arlindo (morto em 1987) não incluiu o samba-rock e nem chegou a ver a explosão do samba-reggae baiano, que conquistou a mídia no início dos anos 90.
Em tempos imemoriais, jogava-se em todos os campos. Os sambistas compunham desde a seresta, passando por sambas canções, sambas dolentes, partido-alto, chorinho, até desembocar nos sambas enredo. Ou seja, compor para o desfile da escola de samba era apenas a demonstração do talento autoral dos bambas.
Cartola, Carlos Cachaça, Silas de Oliveira, Mano Décio, Geraldo Babão, Candeia, Zé Kétti, Noel Rosa de Oliveira, Dona Yvone Lara, Martinho da Vila, Paulinho da Viola, Zuzuca, Roberto Ribeiro, João Nogueira e, mais recentemente, Luiz Carlos da Vila, Arlindo Cruz, Paulinho Mocidade, Franco e Maurício Maia são nomes ligados ao carnaval, mas se consagraram com um diversificado repertório de MPB. Outros compositores que volta e meia concorriam nas disputas, mas nunca venceram, como Luiz Ayrão, Agepê, Moacyr Luz, Jorginho do Império e Lecy Brandão, mantêm uma carreira musical bem sucedida.
E o que falta então aos compositores da novíssima geração enveredar por outros rumos? Será que começaram suas carreiras atraídos pelos bons trocados em direito autoral na vendagem dos discos, execução dos sambas na mídia e pelo direito de arena? E todo esse povo não poderia ter um repertório para ser gravado por gente do quilate de Almir, Aragão, Fundo de Quintal, Leci, Martinho, Paulinho, Revelação ou Zeca?
A ânsia de ter um samba enredo cantado na avenida passou para o mundo virtual. A garotada chegou ao luxo de compor samba via internet, com as parcerias sendo criadas em chats e listas de discussão. Muita gente ganhando samba sem nunca ter sentado numa mesa de bar. Lembro-me de uma entrevista na qual indagado como ele e seu parceiro Jorge Macedo compuseram o clássico “Das maravilhas do mar fez-se o esplendor de uma noite”, David Corrêa lascou: numa mesa de bar regados a um engradado de cerveja.
Mas esse texto não é uma crítica não. É apenas a curiosidade de ver como toda essa gente boa e talentosa poderia contribuir para a música popular brasileira. Afinal, Noel Rosa e Vadico já ensinavam na lindíssima “Feitio de oração”: batuque é um privilégio/ ninguém aprende samba no colégio/(...) o samba na realidade não vem do morro nem lá da cidade/ e quem suportar uma paixão sentirá que o samba então/ nasce no coração.
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